Diante o atual caos econômico, político e social, vividos no Brasil durante esse período de isolamento social pouco planejado pelo poder público, mas necessário, alguns elementos de eixo secundário, que estão em análise, se tornam um axioma, uma jogada política para criar uma cortina de fumaça. Desviar do foco é uma estratégia clara do atual governo, visto que se há um problema, a opção é criar outro, de forma deliberada, confundindo substancialmente todos os atores políticos, criando e recriando a desordem socioeconômico ambiental. Enganar e ser enganado por suas próprias palavras, se apresenta como engodo, uma armadilha política, afinal, “certamente a mente, mente, tanto mente que nem sente a semente que plantou”. Essa última frase é do grupo musical paranaense, Confraria da Costa, apresentando uma letra, no mínimo, pertinente para o atual cenário que considera a cloroquina (e seus derivados), com pouca comprovação de eficácia, uma espécie de El Dorado médico da modernidade em tempos de pandemia. Utilizaremos ao longo desse artigo alguns trechos da música, que estarão entre aspas.
Parece que o debate atual sobre a cloroquina (e seus derivados) é como a escola sem partido da medicina. Após a publicação do último estudo, o mais robusto até então, publicada na tradicional revista cientifica The Lancet, no dia 22 de maio desse ano, e com a posição da OMS e diversos países com relação a esse procedimento, considerando ineficaz e perigoso, para os negacionistas, defensores de respostas agradáveis a seus ouvidos, demonstra que a política de enganar “[…] mente até de trás pra frente”. Esse fato, quase inexorável da sociedade, de se enganar, é uma máxima, em que todos, inclusive eu e você, podemos cair nesse ardil. Não por acaso a ciência, que até pouco tempo atrás era considerada um inimigo do governo, deve ser visto como uma vela acessa no meio da escuridão, resgatando aqui as contribuições de Carl Sagan. Grandes revistas científicas mundiais, como Nature e Science, fizeram editoriais sobre a condução política do nosso país, sobre os mais variados temas, inclusive a The Lancet. A habilidade humana de pensar, objetiva e subjetivamente, adquirida por uma revolução cognitiva, por meio da revolta e recusa, é capaz de modificar o discurso político, “que rosna quando sentem medo, e berra quando quer segredo”.
No debate da cloroquina não se refere apenas a saúde e questões econômicas, pois a ideologia está enraizada nesse discurso. A sociedade brasileira está viciada em suspense e drama, e a população “[…] pega um frasco do seu tédio, e engole mais um remédio”. Nessa perspectiva, sempre comento com as pessoas mais próximas, que eu, no caso de perceber uma piora do meu quadro, não vejo problema nenhum em tentar propostas alternativas, afinal, meu objetivo é a sobrevivência, apelando para tudo que estiver à disposição. Mecanismos pseudocientíficos e até místicos, apresentado por Carl Sagan como falsa ciência, pode até ser utilizado em momento de desespero, visto que a fé é um tipo de elixir da vida. Todavia, não se pode constituir uma espécie de política pública, pois a ciência deve ser compreendida pelo misto do ceticismo e admiração, capaz de afastar a humanidade do mundo assombrado pelos demônios.
Em tempos de pós-verdade, como faz falta um Carl Sagan, um Isaac Isimov, entre outros, que de forma fácil, apresentavam temas complexos para toda uma população leiga e carente de conhecimento. Cosmos, sem sombra de dúvidas foi a série que mais me influenciou, e sua continuação com Neil deGrasse Tyson possui um episódio de fundamental relevância: sala limpa. Esse episódio apresenta a história de Clair Patterson e sua luta contra o chumbo, sendo considerado uma das principais conquistas de saúde pública no mundo. Essa luta não foi fácil, afinal, haviam cientistas do outro lado, extremamente competentes e respeitáveis, se “deixando” enganar, criando de forma orquestrada argumentos pró-chumbo. No momento que o objetivo era vender chumbo, representando por um mercado poderoso, o petroleiro, esses financiavam pesquisas para defesa de seus lucros, algo até então, compreensivo, mas lamentável. Exemplos não faltam…
Por esse motivo é importante a posição das instituições, como as que ficaram ao lado de Clair Patterson, utilizando o princípio da precaução até que sejam apresentados estudos mais robustos com relação ao tema. Ao se pensar na cloroquina, percebemos que existem excelentes médicos e cientistas na defesa do seu uso, todavia, são grupos isolados, minoritários, cabendo a eles a publicação de seus resultados com maior robustez, contrariando e refutando a última pesquisa sobre o tema.
Diversos pareceres técnicos realizados por sociedades e associações científicas, antes do estudo publicado na The Lancet (22 de maio), solicitavam cautela quanto ao seu uso, recomendando fortemente o aguardo por resultados de outros estudos, para que se chegue a conclusão final sobre a hidroxicloroquina e sua eficácia para o tratamento da Covid-19. Inclusive, a própria publicação a qual nos referimos, deixa claro a necessidade de novos estudos. Todavia, o campo político brasileiro vem desconsiderando o caráter técnico, não apresentando ações concretas, optando pelo desconhecimento como práxis.
Pessoas ignorantes no tema, como eu, devem se posicionar de acordo com as instituições, em sua defesa, que podem até estar equivocadas, mas tal ato demonstra respeito as comunidades científicas, dado o desconhecimento sobre o assunto. Esse compromisso deveria ser adotado pelos atores políticos, principalmente os políticos, por serem responsáveis pelo bem-estar de sua população, principalmente nesse momento de pandemia, afetando da saúde ao emprego e renda. Mesmo que o posicionamento nos desagrade, quando apresentam metodologias e testes robustos, devem ser aceitos, até que se prove contrário, pois há uma grande diferença entre argumento e opinião. A opinião de um leigo, dentro de um debate tão complexo, pouco importa, e só se constituí um argumento o apropriado embasamento teórico, levando em conta publicações avaliadas por pares, ou seja, pessoas especializadas. A opinião nos engana, ela mente, “[…] como quem faz um assassinato, parecer um acidente”.
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