Bolsonaro é o protagonista dos atos violentos no Brasil. No Pará, elites locais e o poder público também atentam contra um dos valores do sistema político que os colocou no poder.
A Constituição Federal de 1988, nos seus artigos 5 e 220, é, atualmente, o principal instrumento garantidor da liberdade de imprensa e do exercício do jornalismo no Brasil. A Carta Cidadã, assim batizada pelos constituintes por fundamentar aspirações mais justas à sociedade brasileira após o período da ditadura militar (1964-1985), trouxe ao primeiro plano a importância da comunicação e, em particular, do jornalismo para o regime político que reinaugurara.
Considerada por uns como mantenedora de poder e privilégios nas mãos de poucos e fomentadora de miopias sociais, e por outros como o poder moderador das sociedades democráticas, não há como não pensar a mídia como um todo – para fazer referência a todo um campo em que se encontram grandes e pequenas indústrias de comunicação, do entretenimento ao jornalismo, além das plataformas de mídias digitais – como um espaço fundamental para pensarmos a relação entre política e sociedade.
No entanto, mesmo com os avanços nas garantias de liberdade de expressão e imprensa dos últimos 30 anos, recentemente, com o avanço de forças conservadoras sobre a política institucional e nas ruas do país, o jornalismo e os jornalistas têm sido alvos de ataques violentos. Em 2019, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), foram registrados 208 casos de violência no Brasil, que vão desde agressões físicas a tentativas de questionar a credibilidade de profissionais e veículos de imprensa. De todos esses casos, chama particular atenção ao papel desempenhado pelo presidente Jair Bolsonaro, que sozinho foi responsável por 121 desses ataques.
Em 2020, não está sendo diferente. Em um ano marcado pela pandemia do novo coronavírus, que confinou boa parte da população mundial nas suas casas, recolocando meios de comunicação de massa em lugar de destaque e catalisando diversas práticas a partir das mídias digitais, o Brasil sofre ainda mais com a violência contra o jornalismo e, mais recentemente, com a ocultação de dados sobre a COVID-19 por parte do governo federal. Só neste ano, Bolsonaro fez 179 ataques à imprensa, segundo o monitoramento da Fenaj.
Tais ataques levaram diversos veículos de comunicação hegemônicos, como Globo e Folha de São Paulo, a não enviarem mais equipes de reportagem para cobrir a fala matinal diária do presidente na porta do Palácio da Alvorada, em Brasília. Entre os veículos não hegemônicos, as críticas a essa cobertura e aos ataques sempre foram incisivas desde o período eleitoral de 2018, que conduziu Bolsonaro ao Executivo. O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma das entidades que sistematizou e analisou os ataques à imprensa no relatório “Direito à Comunicação no Brasil – 2018”.
No contexto atual, além de amargar o gosto de ser o epicentro da pandemia e, com recordes diários de óbitos, a não divulgação de dados oficiais de forma completa sobre o novo coronavírus no Brasil e a dificuldade na obtenção desses dados entre jornalistas agravam ainda mais nossa capacidade de combater a doença e confunde cidadãs e cidadãos na tomada de decisão sobre o que fazer diante do medo e do vírus.
É o que a diretora-geral da UNESCO, Audrey Azoulay, chama de infodemia: a epidemia de desinformação marcada pela disseminação de boatos, informações falsas e retiradas de contextos originais que se intensificou durante a pandemia.
Para além do contexto da marcado pela COVID-19, outras situações se revelaram particularmente perigosas para jornalistas. Coberturas sobre assassinatos e denúncias de desmatamento na Amazônia já se tornaram casos emblemáticos. A notícia sobre o Dia do Fogo, protesto de produtores rurais no município de Novo Progresso, no sudoeste paraense, produzida pelo jornalista Adecio Piran no seu jornal, tornou-se objeto de ameaças e de um panfleto em que o jornalista é acusado de ser estelionatário. Adecio registrou boletim de ocorrência em que alega ser alvo de calúnia e difamação e de tentativa de intimidação. A agência Amazônia Real denunciou o caso.
Em Rondon do Pará, sudeste do estado, onde funciona a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), estudantes e professores de jornalismo têm dificuldades de estabelecer relações com as fontes da cidade. Particularmente no que se refere a órgãos públicos, como prefeitura, secretarias e câmara municipais, a indisponibilidade e a inabilidade para atender a imprensa universitária acaba se convertendo também em uma lesão à população e ao exercício do jornalismo, uma vez que compromete o princípio da transparência pública e da liberdade de imprensa.
Em caso recente, na produção de reportagem sobre a contaminação de profissionais de saúde para o portal Rondon Notícias, a equipe de reportagem e professoras envolvidas na orientação das repórteres só obtiveram a devida atenção quando a matéria foi publicada, evidenciando relatos controversos sobre a situação das vítimas na cidade.
Ainda segundo a Fenaj, entre os tipos de violência mais praticados contra jornalistas estão agressões verbais, agressões físicas, intimidações, censura e até assassinatos. Plataformas de mídias digitais são os principais veículos dos casos em que protegidos pelo “anonimato”, agressores sobem hashtags ofensivas e atacam perfis de profissionais.
Tais casos só reforçam a diversidade de atos que violentam o jornalismo e seus profissionais e aprendizes. Comunicação é direito, e política é comunicação, seja no ato mesmo de formular ações, seja no processo de circulação de informações que moldam nossas preferências e nos ajudam a formular posicionamentos. No nosso caso, parece que ambos os processos estão prejudicados e a democracia, sustentada por este pilar, também parece sofrer com esses e outros ataques.
*Texto originalmente publicado no Jornal Resistência