Por Camila Gusmão e Jussara Alves
Enquanto cresce a procura por atendimento na saúde pública em todo o país, Rondon do Pará precisa reorganizar seu quadro de profissionais porque muitos deles foram infectados pelo novo coronavírus. Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde, até o momento 73 casos foram acompanhados entre profissionais de saúde e segurança, considerando suspeitos, monitorados e descartados. 17 testaram positivo para a doença, sendo 15 servidores e 2 contatos próximos. Dos contaminados, dois faleceram. 40 tiveram resultado negativo e 16 profissionais estão em isolamento domiciliar aguardando a data indicada para efetuarem a testagem rápida. Os 33 afastados representam quase 10% do número total de profissionais ativos lotados na Secretaria de Saúde, que é de 351. O Conselho Municipal de Saúde diz que a maioria dos infectados trabalha no Hospital Municipal, cujo quadro é de 82 funcionários.
Os primeiros casos registrados entre profissionais da saúde foram o da enfermeira Carla Mileni Siqueira dos Santos e o do técnico de enfermagem Geraldo de Oliveira. Ela não resistiu e foi a segunda pessoa a falecer devido à Covid-19 em Rondon do Pará, no dia 3 de maio. 21 dias antes havia ocorrido o primeiro óbito na cidade em decorrência do vírus, uma senhora de 72 anos que foi atendida pela enfermeira quando deu entrada no Hospital Municipal, com síndrome respiratória aguda grave. Após o atendimento, a paciente foi transferida para o Hospital Regional de Paragominas, a 250 quilômetros de Rondon, e teve o teste para coronavírus confirmado um dia depois de seu óbito.
A filha de Carla, Nathalia Roberta Siqueira dos Santos, relata a falta de um tratamento humanizado durante os dias em que a mãe esteve doente. “Acho que isso seria totalmente necessário para esses pacientes, tanto para contaminados com sintomas leves como, e principalmente, para os pacientes com sintomas graves”. A situação dos pacientes diagnosticados com o vírus e o isolamento completo da família também preocupa os familiares. “Eu fiquei muito abalada. Eu não via minha mãe há quase dois meses. Como estou em Belém, queira estar do lado dela ajudando como podia. Mas não tinha como. Então fiquei daqui muito preocupada, apreensiva, nós da família passamos dias sem dormir direito preocupados com o estado de saúde dela”, relata Nathalia.
O colega de Carla, Geraldo de Oliveira, que trabalha na emergência do Hospital Municipal, deu entrada como paciente no dia 27 de abril, e teve o teste para coronavírus confirmado no dia 1 de maio. Pela idade, 60 anos, e a diabetes, fazia parte do grupo de risco. Depois de passar vários dias internado na Unidade de Terapia Intensiva –UTI do Hospital Regional de Marabá, conseguiu se recuperar. A esposa dele, enfermeira Mara Cristina de Souza, que atua na parte administrativa do departamento de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Saúde, participou da investigação do primeiro caso de coronavírus registrado no município para tentar sanar o possível foco da doença e acompanhou o marido na luta contra o vírus. “Ele só foi notar que poderia ser coronavírus porque começou a sentir fraqueza, que é um sintoma além da gripe, da tosse e da febre. Alguns podem apresentar dores musculares. Mas o sintoma mais grave mesmo foi a falta de ar, isso que fez com que ele fosse internado”, conta Mara. Para a enfermeira, o profissional de saúde que atua dentro do hospital corre muitos riscos, mas faz parte da profissão. “Alguém tem que ficar, não pode largar, porque você fez o compromisso de trabalhar na saúde. Ou você fica ou você abandona, mas alguém tem que cuidar dessas pessoas”.
No dia 16 de maio, outro servidor faleceu em decorrência da Covid-19. Raimundo Nonato Silva da Conceição era técnico de enfermagem do HM e ficou internado na UTI em Marabá. Na entrada do Hospital Municipal, uma faixa homenageia o servidor que trabalhou por 22 anos no município.
O número crescente de casos confirmados de Covid-19 em Rondon do Pará é resultado também da falta de cuidado da comunidade em seguir as medidas necessárias para evitar a disseminação do vírus. Para o médico José Henrique Lopes, do hospital São José, existe ainda uma dificuldade em fazer a população assimilar as informações, com isso o vírus tem se propagado mais rápido. Outro fator preocupante é que o município não tem estrutura, tanto na rede particular quanto na rede pública, para atender uma demanda grande de pacientes infectados. Rondon não tem nenhuma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e a mais próxima está em Marabá, a 150 quilômetros de distância, que atende toda a região.
Hoje, os testes disponíveis são o teste rápido e o realizado pelo Laboratório Central, em Belém. O teste rápido detecta se uma pessoa teve ou não contato com o vírus através da identificação da presença de anticorpos produzidos como mecanismo de defesa. O resultado sai em torno de 30 minutos. Para obter mais chances de ser verdadeiro, é recomendado fazer o exame a partir do sétimo dia após o surgimento dos sintomas. Se fizer antes desse período pode dar um falso negativo, mesmo que o paciente esteja contaminado. A prefeitura de Rondon do Pará recebeu 80 testes rápidos, enviados pelo Ministério da Saúde, destinados apenas aos profissionais de saúde, segurança pública e pessoas que residem no mesmo domicílio de um desses profissionais e apresentarem síndrome gripal.
Já o teste realizado pelo Lacen, chamado RT-PCR, é o mais preciso, capaz de identificar a presença do vírus no início da infecção e dificilmente apresenta resultado falso. O laboratório leva cerca de uma hora e 40 minutos para analisar 21 amostras, mas o resultado dos exames sai entre uma e duas semanas após o envio – depende da demanda de amostras a serem analisadas. O ideal é fazer o exame de três a sete dias após o primeiro sintoma de Covid-19. No entanto, de acordo com o protocolo publicado na Portaria 007/2020, de 27 de abril de 2020, da Secretaria de Saúde, que segue as normas técnicas do Ministério da Saúde e da Secretaria Estadual de Saúde, o exame só deve ser feito em pessoas que apresentarem síndrome respiratória aguda grave. Como não é possível testar todos os suspeitos, ocorre a subnotificação dos casos. “Existe um protocolo que é feito, que tem que ser seguido, que é do Estado. Como não se pode testar todo mundo, acaba subnotificando”, afirma o médico José Henrique Lopes. Sem a testagem em massa, muitas pessoas assintomáticas podem ter o vírus e passá-lo sem saber.
A presidente do Sindicato de Enfermagem do Estado do Pará, Antônia Trindade, comenta que os testes rápidos deveriam ter sido utilizados pelos profissionais da saúde desde o primeiro momento do vírus no estado. Em Rondon do Pará, esse tipo de diagnóstico só chegou no dia 27 de abril. “Disponibilizaram muito tarde e por isso os profissionais iam trabalhar sem saber que estavam contaminados”, observa Antônia.
Pedidos de esclarecimentos
Devido aos diversos problemas relatados por profissionais de saúde do município, o Conselho Municipal de Saúde encaminhou vários ofícios à Secretaria Municipal de Saúde, através do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde no Estado do Pará – SindSaúde, nos quais constavam os seguintes pedidos: Equipamentos de Proteção Individual – EPIs, Equipamentos de Proteção Coletiva – EPCs, afastamento dos servidores do grupo de risco, treinamento para uso de EPIs e aumento do grau de insalubridade pago aos profissionais da saúde. Segundo o presidente da entidade, Antonio Paulo Silva, a Secretaria não atendeu às solicitações do Conselho. “No dia 01 de abril a gente mandou um ofício solicitando os EPIs e as condições de trabalho. E que fossem feitas algumas adaptações no Hospital Municipal, pensando na proteção dos trabalhadores. Com os trabalhadores protegidos, eles terão capacidade de ajudar as pessoas que porventura vierem a adoecer, como já está acontecendo”, diz Silva.
Segundo o presidente do Conselho Municipal, o Hospital Municipal não possui estrutura adequada para que os profissionais de saúde tenham segurança para trabalhar. Para ele, a falta de estrutura geral foi um dos fatores que possivelmente influenciaram no aumento dos casos de profissionais de saúde infectados. A distribuição dos EPIs foi feita de forma tardia, alguns inadequados e em quantidade insuficiente – já que são descartáveis. Entretanto, declara que cabe uma investigação mais minuciosa para concluir as afirmações. Faltam pias, torneiras apropriadas para higienização das mãos com alavancas ou automáticas, dispensador de sabão adequados e espaço específico para troca do vestuário para que o profissional não saia para a rua com a mesma roupa que usou durante os atendimentos. Além disso, é necessário que os materiais sejam descartados corretamente. “Isso, somado aos EPIs, previne as contaminações. Não há no Hospital Municipal, mesmo antes da pandemia, um local apropriado para fazer a paramentação dos EPIs. Agora, depois de muita cobrança, separaram uma enfermaria para que esse processo fosse feito ali. E não tem estrutura, não é um local correto”, declara Silva. Além disso, o que pode ter contribuído para o aumento de casos com complicações da doença é que os servidores do grupo de risco não foram afastados. “A Secretaria Municipal de Saúde não afastou o pessoal do grupo de risco. Solicitamos esse afastamento. Os poucos que estão afastados foi porque o servidor se impôs. Afastaram na ‘força’ por risco de serem punidos administrativamente posteriormente. Mas não houve iniciativa da Secretaria Municipal de Saúde para atender o nosso pedido e nem a iniciativa própria de fazer isso antes e nem depois”, observa Silva.
Silva avalia que, assim como a maioria das pessoas, os profissionais de saúde também tem medo, mas é um compromisso que fizeram. No entanto, algumas situações fazem esse medo aumentar, como ver a falta de assistência com colegas doentes, dificuldade para fornecer o EPI, cobrança de produtividade sem providenciar as condições adequadas para trabalhar, a morte de colegas, lidar com várias pessoas doentes e prever uma possível contaminação. “Diariamente você trava uma batalha, você terminou o plantão e nem sabe se está contaminado ou não, mas é porque o vírus pode se manifestar dias depois. É uma dúvida que fica na sua cabeça por vários dias”, completa Silva.
A secretaria de Saúde, Eilla Ramalho de Deus, não concedeu entrevista, mas pediu que as perguntas desta matéria fossem enviadas por Whatsapp. Em resposta, encaminhada por texto, a secretária afirma que os servidores que fazem parte do grupo de risco tiveram suas atividades adaptadas para resguardá-los. Alguns passaram a trabalhar em casa, outros iniciaram atendimentos por contato telefônico ou foram deslocados de setor, além da possibilidade de adiantamento das férias. Além disso, Eilla diz que os servidores, sendo de grupos de risco ou não, que apresentam sintomas de síndromes gripais são orientados a fazerem o isolamento domiciliar pelo período de 14 dias e são monitorados pela equipe de Vigilância em Saúde. “Por sua vez, a Central de Monitoramento e Combate ao Novo Coronavírus do município atua diariamente no suporte aos profissionais da saúde, bem como à população como um todo. É realizado o acompanhamento de casos suspeitos de COVID-19 por uma equipe multiprofissional orquestrada pela Vigilância em Saúde, sempre obedecendo os protocolos preconizados pelos órgãos oficiais”.
A secretária de Saúde afirma ainda que foram utilizados os EPIs corretamente. “Qualquer demanda judicial nós temos como comprovar que esses EPIs nós temos através de processos licitatórios para a compra e através de protocolos assinados pelos servidores”. Segundo ela, “foram disponibilizadas para as equipes EPIs e insumos em consonância ao estipulado pelo Ministério da Saúde, de acordo com as normativas estipuladas na Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA Nº 04/2020, sendo obedecida a especificidade de cada setor, conforme consta nas orientações descritas no plano de contingência do município”.
A reportagem entrou em contato com nove funcionários do Hospital Municipal, mas nenhum se sentiu confortável para dar depoimento. Alguns dizem estar doentes e outros abalados psicologicamente.
Apuração sobre irregularidades
O Ministério Público deu início a um processo administrativo, através da Portaria N° 06/2020-MP/PJRP, no dia 08 de maio, para “apurar irregularidades no fornecimento de equipamentos de proteção individual aos profissionais de saúde que atuam no enfrentamento da pandemia do coronavírus, bem como na adoção das diretrizes sanitárias estabelecidas para o combate da doença, nas dependências do Hospital Municipal de Rondon do Pará/PA”. O processo leva em consideração um ofício expedido em 6 de maio pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, subseção de Rondon do Pará, no qual aponta que a municipalidade não tem adotado as medidas de proteção aos profissionais de saúde que atuam no Hospital Municipal, tendo em vista que a metade dos infectados no município são profissionais de saúde e seus familiares e que eles teriam iniciado os trabalhos de combate ao coronavírus sem EPI. Também são consideradas as solicitações do Sindsaúde, no qual aponta por meio do ofício nº 02/2020, expedido em 01 de abril de 2020, antes de existirem casos confirmados da doença no município, que pediu à Secretaria de Saúde a distribuição imediata de EPIs e treinamento para os profissionais que fossem atuar na linha de frente do combate ao coronavírus. Também foi requerido o afastamento dos servidores do grupo de risco por meio do ofício nº 05/2020 de 08 de abril. Essas solicitações, segundo o Sindsaúde, não foram atendidas mesmo com a destinação de orçamento específico da prefeitura para a compra de equipamentos e contratação de novos servidores durante a pandemia.
O prefeito Arnaldo Rocha instaurou uma sindicância administrativa no dia 21 de maio para apurar se houve irregularidade na “executiva de políticas públicas e protocolos no âmbito do Hospital Municipal”, considerando a portaria n° 06/2020 do Ministério Público. Foi criada uma comissão com três servidores que terão o prazo de 30 dias, prorrogáveis, para concluir as investigações através de um relatório. O prefeito afastou a diretora do Hospital Municipal, Maria Helena Brito e nomeou interinamente o servidor, Levi Assis Costa, no dia 22 de maio, para responder pela diretoria administrativa do hospital.
A Câmara Vereadores de Rondon do Pará também convocou a Secretária Municipal de Saúde para prestar esclarecimentos sobre o aumento de casos e óbitos por coronavírus no município. A sessão acontecerá no dia 1 de junho. Segundo o vereador Carlos Vidal, autor do requerimento, a reunião pretende buscar detalhes da Secretaria de Saúde nas ações de combate ao coronavírus e sobre os recursos recebidos do governo federal. “Mais questionamentos vão surgir de acordo com o que cada vereador quiser perguntar”. Ele ainda não sabe se a reunião será presencial ou transmitida ao vivo pela internet.
Saúde mental
Além das questões de saúde física, problemas psicológicos também estão presentes no cotidiano dos que estão na linha de frente. A filha da enfermeira Carla, Nathalia Roberta, disse que a mãe passou por momentos de ansiedade quando começou a sentir os sintomas do vírus, já que tinha tido contato com pacientes contaminados. “Acredito que a ansiedade e o medo contribuíram para agravar o seu estado, além dos sintomas, claro. Hoje em dia ninguém sabe ao certo como esse vírus reage em cada organismo. Como nem ela, nem ninguém tinha esse conhecimento ainda, acredito que isso acarrete uma série de transtornos psicológicos.
A ansiedade é um fator que influencia muito no tratamento da doença. De acordo com o médico José Henrique Lopes, até pessoas que não tinham problemas de ansiedade são impactadas. O fato de contrair a doença, ou ter que ficar isolado e não poder sair, colabora para o desenvolvimento desse problema psicológico. Isso se agrava no caso dos profissionais da saúde, que atuam na linha de frente do combate ao vírus e estão mais expostos ao risco de serem contaminados com a doença. O hospital da rede particular conta com o apoio de uma psicóloga, psicoterapeuta, terapeuta ocupacional e uma fonoaudióloga que ajudam esses profissionais. “É uma preocupação muito grande, mas quando lá atrás assumimos o compromisso de cuidar da vida, já sabíamos de todos os percalços que poderiam existir. Então a gente tem que enfrentar”, diz Lopes. De acordo com a psicóloga Luana Cabette, o acompanhamento psicológico com os profissionais da saúde é essencial neste período de pandemia, principalmente devido às situações cotidianas dos atendimentos, a perda de colegas de profissão e o isolamento da família quando diagnosticados com o vírus. “Eles estão extremamente abalados. É uma sensação de impotência diante um vírus que é algo invisível que causa tanta mudança. A questão do isolamento é complicada para qualquer ser humano pois vivemos numa sociedade extremamente acolhedora e de uma hora para outra é preciso ficar distante”. A coordenadora do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Daniella Massucatti, está atuando diretamente no enfrentamento ao Covid-19, principalmente no monitoramento de viajantes e pessoas com sintomas e síndromes gripais. Segundo ela, os atendimentos psicológicos presenciais foram suspensos pelo Conselho Federal de Psicologia, em função da pandemia. Para suprir a demanda foram disponibilizados vários serviços de atendimento psicoterapêutico virtual ou via telefone, oferecidos pela rede privada, pública, ou ainda de forma voluntária por parte dos profissionais da psicologia para oferecer suporte psicológico às pessoas neste momento.
No caso do Hospital Municipal, segundo a então diretora, Maria Helena Britos, os profissionais da saúde têm participado de um grupo terapêutico uma vez na semana, além do afastamento daqueles que sentem algum sintoma relacionado à Covid-19. O grupo trata no máximo de dez pessoas que variam a cada semana, e os que estão afastados passam por teleatendimento com a psicóloga e a terapeuta.
1 thought on “Um a cada dez profissionais de saúde de Rondon pode estar contaminado pela Covid-19”