Os economistas ecológicos consideram a Terra como um navio e a produção material bruta da economia como a carga. A navegabilidade do navio é determinada pela sua saúde ecológica, pela abundância das suas provisões e pelo seu design. Os economistas ecológicos reconhecem que estamos navegando em mares desconhecidos e que ninguém consegue saber a previsão do tempo para a viagem, por isso não sabemos exatamente quão pesada a carga pode ser sem afetar a nossa segurança. O que sabemos é que uma carga pesada demais afundará o navio (DALY; FARLEY, 2016, p. 35-36)
Dando continuidade as análises econômicas desse momento histórico que une um governo populista de extrema direita e uma pandemia global, os próximos artigos tentarão analisar a conjuntura por meio das lentes da economia ecológica. Para iniciar essa seção nos valeremos de dois conceitos macroeconômicos importantes, apresentados pelo economista Herman Daly, sendo: mundo vazio e mundo cheio.
O mundo vazio, pertencente a outras Eras, constitui em um sistema no qual agir economicamente é tolerável, afinal, por mais que os recursos sejam finitos, o sistema produtivo não afetava a capacidade de suporte e os ecossistemas possuíam prazo para sua resiliência. Pensem nas sociedades primitivas até o início da revolução industrial. Nesses períodos históricos, por mais que a humanidade sempre estivesse envolta pela peste, guerra e fome, os ecossistemas impactados possuíam relativa a capacidade de absorção, logo, a economia não interferia drasticamente em suas funções e serviços, resultando no bem-estar humano. Percebemos assim que a economia consistia apenas em um subsistema de um sistema maior, o ecossistema, regido pelo primado da biologia e física. Essa perspectiva pode ser melhor compreendida conforme a Figura 1.
Entretanto, a partir da revolução industrial, dentro do credo liberal e vitória do sistema capitalista de produção, a economia se tornou uma forma absoluta de sistema, desconsiderando todo o restante. A economia clássica se apresenta cega aos demais elementos do espaço, como os ecossistemas, considerando o sistema econômico o motor do mundo, um todo, uma espécie de Deus fabricado. Essa visão se perpetua até os tempos atuais, visto que o crescimento econômico é a grande premissa perseguida pelas Nações. Os líderes políticos não se preocupam com a felicidade das pessoas, isso é irrelevante, o que importa é um sistema consumista, que por meio do consumo conspícuo faça o bolo crescer, sendo incapaz de distribuir renda e reduzir desigualdades. O mundo cheio é representado pelo Antropoceno que nada mais é que uma nova era geológica, a época dos humanos, que conforme aumenta sua população, pressiona o ambiente natural. Com o avanço desse modelo há os mais diversos desequilíbrios ecossistêmicos, dentro de um modelo produtivo com elevado desperdício de natureza e criando os mais diversos riscos e vulnerabilidades nos territórios. A Figura 2 é possível sintetizar a proposta do mundo cheio, e a pressão do sistema econômico aos ecossistemas.
Essa busca do crescimento infinito dentro de um planeta finito, em que o capital natural está sendo substituído pelo capital manufaturado, consiste em uma inversão lógica, se tornando um erro crasso da nossa espécie. Há quem acredite que o capital manufaturado será capaz de substituir o capital natural, e que todos os problemas socioambientais serão resolvidos pelo progresso tecnológico, remetendo ao cavalo de Samarra. Mesmo se isso for possível, qual será o custo para os seres vivos do planeta? Pensando nas outras espécies que dividem esse planeta conosco, a forma como nos apropriamos desses seres vivos, transformando-os em engrenagens de um sistema produtivo, constitui uma das maiores atrocidades da humanidade, pior até que a escravidão. O sofrimento animal será um ponto a discutimos no futuro.
Retomando o escopo, crescer não é evoluir, crescer é basicamente ficar maior, e a evolução consiste em ficar melhor. O desenvolvimento sustentável, por mais que possa ser um conceito ainda vago, e até ideológico, busca essa evolução, respeitando a capacidade de suporte dos ecossistemas. Não atoa que a economia ecológica se apresenta como uma teoria evolucionária, com elevado ceticismo as demais correntes convencionais, mas sem desconsiderar o tronco histórico comum.
Dito isso, fica claro a postura do atual governo com relação ao modelo econômico que vem sendo adotado. Na visão da equipe econômica do governo, capitaneada por Paulo Guedes, o mundo continua vazio e a economia é um sistema absoluto. Suas políticas focam basicamente no crescimento econômico, em que os recursos bióticos e abióticos estão para servir a humanidade. O atual governo possui um desprezo latente para com as pautas ambientais, afinal, defender o ambiente natural e métodos produtivos com menor desperdício de natureza se tornou um entrave para o almejado crescimento econômico. Desconsideram em absoluto as externalidades negativas da expansão desgovernada da produção intensiva em poluição e desmatamento, e por pressão internacional, recuam em seus absurdos, mas sem desacreditar em suas convicções.
Como bem afirma Luiz Marques (2020) o colapso socioambiental não é um evento, e sim, um processo em curso, necessitando de boas políticas dado as mais diversas advertências e ultimatos da comunidade científica com relação a necessidade de conservação da biosfera e mudanças climáticas. No passado, não muito distante, o Brasil era protagonista com relação a essa temática, e hoje nos tornamos os vilões do mundo – excelente exemplo de mau exemplo. A política ambiental brasileira é desastrosa, diversos retrocessos foram avançando, “passando a boiada”, sendo o objetivo de tais atos uma busca cega pelo crescimento econômico, que por si só, é insustentável.
A política econômica do atual governo demonstra ser analfabeta ambiental, como as teorias que o sustentam também o são. As correntes neoclássicas, excluindo a corrente da economia ambiental, são baseadas em modelos econômicos do mundo vazio, como se a economia ocorresse no vácuo. Não há como negar, nesse momento a ação antrópica da humanidade no planeta, bem como sua pega ecológica, estão alterando significativamente o globo. Diferente de outros momentos, há o risco das presentes gerações deixarem como herança uma situação muito pior as futuras gerações, com alta escassez de recursos e funções ecossistêmicos, distorcendo a famosa curva de Kuznets Ambiental. Qual pai ou mãe gostaria de deixar seus filhos em condições piores?
A proposta de Herman Daly e seu mundo vazio e mundo cheio nos ajuda a ampliar a percepção com relação ao nosso impacto no planeta. A natureza é o elemento central para os sistemas produtivos, sendo a ganância humana um elemento a ser repelida. A economia clássica e neoclássica considera a ganância um ponto positivo, bem representado pela fábula da abelha de Bernard Mandeville. Percebemos isso conforme a celebre frase de Adam Smith (1996, p. 53), vejamos: “não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses”. Se isso constitui uma verdade, um axioma, todos estarão buscando maximizar seus interesses, independente dos impactos a terceiros. Essa é a base ideológica que foi construída no passado e vem sendo perpetuada, tão presentes na visão da equipe econômica, omitindo por exemplo a tragédia dos comuns popularizado por Garrett Hardin (1968).
Todavia, a proposta da economia ecológica, em conformidade com Peter May (2012) consiste em uma abordagem contra as catástrofes ambientais iminentes, cujo o objetivo é a conservação dos recursos naturais por uma ótica que considere as necessidades potenciais das futuras gerações. O mundo cheio é incompatível com as propostas neoclássicas e liberais, afinal, há limites e um custo socioambiental elevado com relação ao crescimento econômico. Isso ocorre por desrespeitar a capacidade de suporte, desconsiderar a lei da escassez, desprezar o primado físico e biológico, amplificar as desigualdades sociais e abstrair os riscos e vulnerabilidades nos territórios. Logo, os mecanismos tradicionais de alocação e distribuição carecem do fator escala, que deve ser compreendido como o volume físico de matéria e energia utilizado no sistema produtivo, pensados em seu processo entrópico das leis termodinâmicas.
Por fim, uma reflexão pela perspectiva da economia ecológica para um próximo momento consiste no pensamento de Daly e Farley (2016, p. 559), vejamos:
- As pessoas que são demasiado pobres não se importam com a sustentabilidade. Por que deveriam se preocupar com o bem-estar no futuro quando nem sequer são capazes de satisfazer as suas necessidades básicas? Em todo o mundo, os extremamente pobres são obrigados a trabalhar em minas, a cortar florestas, a esgotar pastagens e a tolerar uma poluição excessiva apenas para sobreviverem.
- As pessoas que são excessivamente ricas consomem enormes quantidades de recursos finitos, possivelmente privando as gerações futuras dos meios básicos de sobrevivência. Até os economistas mais relutantes em fazerem comparações entre pessoas não conseguem negar que a utilidade marginal do consumo para aqueles que estão abaixo do limiar da subsistência é muito mais elevada do que para os que compram cada vez mais artigos de luxo.
- Se nos preocuparmos com a sustentabilidade, preocupamo-nos com a distribuição entre gerações. Não queremos obrigar o futuro a viver na pobreza para simplesmente podermos consumir mais artigos de luxo. Contudo, qual é o sistema ético que consegue justificar uma preocupação pelo bem-estar daqueles que ainda não nasceram sem se preocupar com o bem-estar dos que hoje estão vivos?
Referências
DALY, Herman; FARLEY, Joshua. Economia ecológica. São Paulo: Annablume Cidadania e Mio Ambiente, 2016.
HARDIN, G. The tragedy of the commons. Science, Vol. 162, 1968, pp. 1243-1248.
MARQUES, Luiz. O colapso socioambiental não é um evento, é um processo em curso. Disponível em: http://revistarosa.com/1/o-colapso-socioambiental-nao-e-um-evento. Acesso: 10 set, 2020.
MAY, Peter H. Avaliação integrada da economia do meio ambiente: propostas conceituais e metodológicas. In ROMEIRO, Ademar Ribeiro; REYDON, Bastiaan Philip; LEONARDI, Maria Lucia Azevedo (Org.). Economia do meio ambiente: Ed. Saraiva. São Paulo: 2012.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Volume I. Editora Nova Cultura, São Paulo, 1996.